Encontros
Naturais
Por Ju Corrêa
Para M.
E todos que almejam algo mais.
Sara tinha uma
vida, problemas, coisas e tal. Tinha um emprego, família e obrigações,
responsabilidades, frustrações, decepções, alegrias e momentos felizes.
Sara era comum, na
sua singularidade particular, tinha opiniões desconhecidas pelo mundo, gostos
peculiares, somatórios de observações e experimentação próprias da sua
capacidade única de sentir o mundo. De ver e entender tudo a sua volta, de modo
diferente. Embora, isso tudo fosse tão particular, tão seu, mascarado por sua
rotina normal, na qual ela entoava o coro dos banais.
Tinha cabelos
normais, castanhos, ondulados, cortados na nuca, sem a necessidade de uma
estética usual, uma parte sua que conseguia sair do ordinário. Hoje, depois de um
dia normal a sua vibração era sensacional, mesmas roupas, suor convencional do
dia inteiro, mas um brilho no olhar. Ela ia se deixar levar, era o que sentia.
Iria encontrar amigos e colegas numa esquina de bares.
Todos os dias de sua vida, demonstrava o
que era esperado demonstrar, e até se convencia certas horas dessa normalidade
que a cercava. Mas, logo lhe atiravam na cara, algo estupidamente incoerente com
sua visão de mundo, e ela, ela se calava, pois o que poderia dizer desmoronaria
aquela bolha em que estava inserida.
Para simplesmente
não cair em desgraça, ela ria, sozinha.
A hora já ia, a noite caia lá fora, e o sol ia se despedindo, num fino rastro que Sara via do cantinho da janela, num prédio cinzento. O seu quadril começava a dançar sozinho, era um prenuncio que hoje tinha algo mais, ia se divertir, conversar, ouvir os rumores da vida alheia, ia comer na rua, beber num copo semi cheio, semi sujo.
Sara tinha seu jeito musical particular, apesar das aparências, quase tudo uma farsa para viver a vida vadia que se estendia a todos. Ela queria mesmo é viver de vida, de humildade e alegria, também, das tristezas que fossem necessárias sentir. Hoje, porém, era dia de deixar sua bela face um pouco à vista.
Saiu do trabalho, caminhou a pé, com um som desaforado e malicioso da sua boca, e de seus amigos, ansiosos por uma bela e gelada cerveja. Ou algo para calar a sede e a semana que trucidava suas costas cansadas. E andavam como se as calçadas fossem um tapete vermelho, como se fossem bárbaros, em busca de uma diversão garantida, tudo era piada, tudo era promessa, era o prelúdio de uma sexta-feira à noite.
Sara com sua turma, chegou como se fossem os magos da diversão, querendo os estilos e bicos nos copos onde houvessem bebidas quentes, ou com teor alcoólico significativo. A parada perfeita, é em qualquer bar onde houver uma cerveja gelada.
A rua estava coberta
de bares, todos num burburinho só de conversas, músicas e tilintar de copos e
bebidas. Sara já havia esganado
a sede com um belo gole de cerveja gelada, como sempre dizia”o
primeiro gole é uma delícia”.
Depois de umas e outras, ela se esgueirou numa barraca de comida de rua, deliciou com os olhos um Ragu de carne moída, e num potinho de plástico deu força para seu corpo continuar naquela empreitada.
Ali perto, algum
bar soava com timidez e força Jorge Ben. E todos transitavam e se esgueiravam a
conhecidos. Particular e de todos, ela conversava, enquanto comia, comida de
rua, ria e chacoalhava ao som de Ben, timidamente.
E, no meio da multidão, ele veio de jeito
singular, usava calça pintada a mão, um colete da Índia, bata branca por baixo,
sandália de couro bem surrada, um ar de humildade e grandeza, com olhar de
reciprocidade. Enquanto estava parada ali na calçada, comendo, ele vinha andando
e cumprimentando as pessoas, ás vezes parava e conversava, e ela o reparava. E fazia de uma
distancia segura, como se repara alguém que sequer sabe da sua existência, uma
figura singular, que todos querem ter e falar.
Foram milésimos de segundos, Sara queria ser aquele cara. Ele chegou perto, perto o bastante para conversar com as pessoas ao redor dela. Papo veio, papo foi, entre ele e os caras e as “caras”. Enquanto ela comia, deliciando de longe aquela figura enigmática.
Foram milésimos de segundos, Sara queria ser aquele cara. Ele chegou perto, perto o bastante para conversar com as pessoas ao redor dela. Papo veio, papo foi, entre ele e os caras e as “caras”. Enquanto ela comia, deliciando de longe aquela figura enigmática.
Enquando ela arrastava seus olhos por todo aquele rapaz, surgia em sua cabeça uma imagem própria. Sara, não era de moda, apesar de querer ávidamente demonstrar tudo o que explodia dentro dela com uma bela vestimenta. Mas, naquele dia, vestia uma camisa normal, calça jeans, sapatos retraídos e baixos. E desse modo, entendia que era tão neutra e normal, que podia passar despercebida para aquele rapaz tão naturalmente diferente.
Contudo, de repente, ele veio
andando, e se esquivando de quem estava perto de Sara, a olhou
profundamente e disse:
_ Quer jantar?
Num espanto, ela respondeu, quase que automáticamente:
_ Só se for
sobremesa, eu já jantei! – e disse isso, enquanto jogava o potinho, já vazio, no
lixo próximo.
Ele sorriu, e sem dizer nada ela
decidiu ir, fitadando a mão tão delicada que se estendida a sua frente. Tocava Ben
naquela estação de encontro, e tudo se resumiu a poucas palavras, ele era
particular e de paz, ela aceitou e queria sugar todas as coisas belas que
despontavam daquele rapaz.
Foram só alguns
minutos de caminhada, a rua ia se despedindo do burburinho dos bares, o som de
Jorge ficava cada vez mais longe e saudoso. Nenhuma palavra foi
dita no caminho, em homenagem a noite que estava linda, a rua de pedras
cintilava a luz da lua e eles conversaram por telepatia.
Ele abriu a porta e ela assentiu em entrar. Era uma porta antiga, era passagem para uma escada, sua casa era um sobrado antigo. Sara subiu na frente dele, lá em cima uma luz amarela dava todo sabor ao lugar, tinham muitos instrumentos musicais, alguns que pareciam vir da Índia, de outros lugares do mundo, de outras culturas.
Ele abriu a porta e ela assentiu em entrar. Era uma porta antiga, era passagem para uma escada, sua casa era um sobrado antigo. Sara subiu na frente dele, lá em cima uma luz amarela dava todo sabor ao lugar, tinham muitos instrumentos musicais, alguns que pareciam vir da Índia, de outros lugares do mundo, de outras culturas.
Haviam muitos tapetes, o chão se demonstrava convidativo para sentar e relaxar. A cama do anfitrião ficava em um mezanino, que tinha acesso por uma escada íngreme de madeira, e tinha todo o charme particular.
Ele passou por ela flutuando pela sala, e a olhou com uma ternura de quem lhe mostra tesouros, retirou seus sapatos, ensinando a ela, delicadamente e com gestos, o que fazer naquele lugar seu. Ela entendeu e retirou seus sapatos também, sem sequer olhar para o chão, tão ansiosa para perceber todo o ambiente, e catalogar na sua mente aquele ar e todas aquelas coisas.
Sara já sabia que ele era músico, e tinha algumas, muitas, músicas gravadas e regravadas, e na sua “consciência coletiva” ele deveria ser bem remunerado. Mas, aquilo perdia toda a semântica e coesão quanto mais ela entrava naquela esfera, naquele lugar com aquele homem, cheio de paz e humildade. Estava explícito que não necessitava de muito para viver.
Havia uma moça,
cabelos longos e lisos, quase pretos, e andava para lá e para cá na cozinha,
logo trouxe o jantar, numa tigela grande de madeira, bem rústica, e tinha uma
comida diferente, repousou-a no chão, o que surpreendeu Sara, colocou os
pratos e copos ao lado, e alguns guardanapos. Ele se sentou e convidou Sara.
Logo depois a moça se foi, lhes deu um tchau com voz amaciada e um carinho no olhar, isso fez com que se sentisse acarinhada.
Sara ainda não
sabia se iria comer, pois havia acabado de jantar. Mas, mesmo assim se sentou e
beliscou algo. Ele comia com as mãos, disse que era o jeito mais gostoso de
comer aquela comida, e na sua opinião, era o jeito mais gostosos de comer
qualquer coisa.
Durante o jantar
Sara o indagou sobre a sua vida, sua relação com a música, e sobre seu modo de
vida simples. Ela fazia essas perguntas com certa profusão de palavras rápidas
e cheias de entusiasmo, sentada no chão com as pernas cruzadas, onde repousava
suas mãos, e recostava sob uma poltrona coberta com uma manta colorida. Sentia
tanta intimidade e liberdade, que não se limitou nas perguntas, havia muito
tempo que não podia falar as coisas que falava sem sentir o peso da reprovação.
E Sara poderia falar, isso porque ele pousava um olhar de entendimento profundo sobre tudo que falava, e respondia com tanta humildade e amor, que parecia não haver limite nos assuntos que poderiam conversar.
Naquele momento ela passou a entender mais sobre ela mesma e sobre tudo, sobre as outras pessoas. Ela passou a entender que o amor que ela sentia nas palavras dele era o segredo para estar aberta a tudo, e dizer tudo, sem ofender ninguém, e que ser humilde era com certeza o tempero certo, para viver da maneira que almejava.
Ele disse que
o sobrado lhe bastava, e entre risadas, que a sua grande luxúria era uma pessoa
para fazer o jantar. Que adorava viajar, e que gastava mais com isso e com
instrumentos musicais, e há muito tempo havia escolhido viver com mais
simplicidade. Ela sorriu e tomou a bebida servida, que era muito boa.
Sentado ao chão, com as pernas dobradas como Sara, ele comia serenamente, e conversava sobre a vida, suas músicas e os dilemas do homem. Ela concordava, discordava e num profundo suspiro, e se sentia à vontade, sendo e falando o que bem entendia, sem receios, ou previsões de discussões, decorrentes de sua ampla opinião, sincera e nada preconceituosa.
A bebida que bebiam,
era da Síria, fabricada no Líbano. Ele lhe disse, que era alcoólica, mas o teor
alcoólico era baixo, contudo, era suave e aveludada. Isso a lembrou do poeta
que havia conhecido ainda menina, através de um livro encontrado entre tantos
outros, um poeta que havia nascido no Líbano, e desde sempre tocava seu coração
com seus dizeres.
Aquele momento que estava vivendo era irracional, mas insuportavelmente conhecido. Um insuportável tão delicioso de se sentir.
Aquele momento que estava vivendo era irracional, mas insuportavelmente conhecido. Um insuportável tão delicioso de se sentir.
Eles riram juntos e o silêncio tomou suas bocas, ele não tocou nada, nenhum instrumento, ela não cantou nada, não escolheu nenhuma música. Eles sorriram com os olhos e com os lábios, numa sabedoria particular, se entre olhando de forma eterna, olhos sintonizados.
Sara se levantou e
olhou pela varanda, sentindo o vento entrar, ele a seguiu, e admirou o seu olhar.
Finalmente se
tocaram, mãos, braços, peito e plexo solar juntos, respiração uníssona. Sentiram
o doce de seus lábios, a textura de seus cabelos, conhecendo cada centímetro um
do outro, com os olhos fechados, abrindo portas para os outros sentidos.
Ele tinha cabelos cacheados, negros, eram cachos pretos, quase azulados. Sua pele era morena, com traços fortes e marcantes, tinha pernas finas e cumpridas, um corpo delicado, dedos cumpridos, mãos grandes, olhos negros.
Tocava no ar a música da brisa noturna que entrava pela varanda. Mas, ele não tocou nada, eles somente se tocaram, e os lábios se beijaram, suas mãos se seguraram, suas pernas se entrelaçaram, os cabelos se misturaram.
Havia tanta calma e
serenidade naquele lugar, a energia se expandia e saltava a fora, pelas
janelas, pela varanda e porta. Quem soubesse ver, enxergaria um clarão de luz
escapando daquele lugar.
No ápice e no fim
de tudo, dormiram sem culpa ou preocupações, ali mesmo na sala, entre os
tapetes e mantas, sem preconceitos, sem querer ou dizer.
Algo havia tomado a
vida de Sara pelos seus braços e pernas, algo havia invadido o seu modo de ser,
tinha expandido seus entendimentos e suas buscas, tinha acalmado sua alma.
De manhã, Sara acordou energizada e serena, a luz do sol apontava pela varanda aberta e o lugar se demonstrava com face diferente na manhã. Agora tudo reluzia de forma iluminada na presença do sol.
A cozinha era junto a sala, só havia uma bancada estilizada a separando do resto da casa. Ela levantou nua, e o olhou, abençoando seu sono. Se espreguiçou, mãos acima da cabeça. Andou devagar, sobre os tapetes e almofadas, achou uma regata colorida e velhinha repousando, solene, no encosto de uma cadeira. A vestiu, e seguiu para cozinha.
Lá encontrou algumas xícaras e canecas, encheu uma delas com água e bebeu, sentindo como se aquela água fosse o elixir mais saboroso de todo o mundo, sentia a água descer hidratando o seu corpo.
Avistou um potinho com café torrado, e teve a idéia de colocar uma água para ferver. E assim o fez. Juntou os copos que haviam tomado aquela bela bebida deliciosa e os levou para pia. Se virou e disse internamente, lavar louça só se for com música, lembrando de Jorge Ben, que tocava no dia anterior, seguiu para o rádio e acho um Cd. Era o álbum a Tábua da Esmeralda, que delícia de músicas, colocou e dançando levemente foi andando para a cozinha, passou o café e tomou uma xícara dançando ao som de os “Alquimistas estão chegando”.
Não se preocupou se
ele iria acordar, aquela casa era feita de música, tinha certeza.
Dançando, se lançou
a água e começou a lavar a sua caneca de café e os copos que repousavam ali. Com
um verdadeiro suingue ela dançava, balançando seu quadril e ombros ao som de
Jorge Ben Jor.
Ele se levantou, já
com sorriu no rosto, algo de bom tocava na sua casa. Colocou sua bata puída
pelo tempo, e seguiu para ver a menina mulher que requebrava um soul
verdadeiramente brasileiro.
Foi chegando de
mancinho, e enquanto tocava “O Homem da gravata florida”, repousou suas mãos
delicadamente na cintura de Sara e entendendo o seu balanço a seguiu no
suingue, enquanto ela lavava e molhava as mãos na água.
Os dois remexiam no
soar exato das batidas, em sincronia, sentiam a música transpassando seus
corpos. Na pausa da música, Sara virou e o olhou com alegria e malícia, ele
sorriu e “Errare humanum Estu” começou a tocar, eles entrelaçaram os dedos, e
subiram suas mãos sob suas cabeças, os pés no chão dançavam, os quadris
remexendo ao som da batida.
Fecharam os olhos,
e se entregaram as notas musicais, a letra, a voz. Juntos dançavam festejando
intimamente a fraqueza e as delícias de ser humano. Não se seguravam, eles se
completavam, respeitavam cada batida de seus corpos à música.
E “menina mulher da
pele preta” iniciou e a alegria da malícia pura, do prazer, preencheu o
comportamento dos dois. Naquele momento Sara espreitou aquele homem, seu corpo
magro, seus cabelos negros, sua pernas. Ele dançava e comia um pão, sorria e a
trazia para peito, para dançar maliciosamente.
A pausa chegou e
ela disse:
- Eu me chamo Sara,
e você?
- Ben. Como Jorge
Ben, que canta agora – ele respondeu .
Ela sorriu, e completou:
- Que coincidência,
que coisa boa. Você me fez “Ben”- Num trocadilho meio piegas.
Ben e Sara não
viraram um casal, não casaram, não ficaram juntos, ele a libertou, e ela o fez
encontrar algo especial, algo que não sentia a muito tempo. Eles se tocaram vez
enquanto, eles se entrelaçaram, mas foram livres.
Sara mudou o
estilo, saiu do emprego, mudou o modo de agir, deu muitas coisas, viveu com
menos, mas com muito mais do que podia imaginar. Ela quis ser em vez de ter.
Teve filhos, amou eternamente e também sofreu, e na sua humildade sobre as
coisas da vida, soube entender os momentos, respeitar a vida e suas aporias.
Ben se abriu ao
amor, casou, teve filhos e seguiu deixando que alguém entrasse profundamente no
seu ser.
Eles se entregaram
a verdadeira beleza dos encontros naturais, e modificados pela experiência de
se deixar, se libertaram do que tanto os incomodava, e isso serenou seus
corações, suas vidas.
Que eu tenha a
oportunidade de estar aberto aos encontros naturais da vida.
“Tem um momento de que todos é
diverso
Em que você se uni ao todo, ao
universo
O tempo então congela feito lá no
pólo
Seu ego some , seu eu ergue-se do
solo
E sai voando entre as estrelas na
amplidão
Você se torna uma delas na explosão
Dentro de si você vê uma grande luz
Rompe-se todas as marras e os tabus
Você mergulha e chega a raiz da vida
Bebe na fonte do seu jorro sem
medida
Enquanto escuta a doce música
distante
Que toca fundo, afundo e finda
Nesse instante
A eternidade então num lapso
encapsula
E a divisão entre você e o outro
nula
Esse estado não é nenhum sonho
impossível
Algo irreal, ou ideal ou desse nível
Nem está vedada a multidão de
abandonados
Nem reservada a só alguns iluminados
Mas ao alcance de nós todos, qualquer
um
De qualquer homem ou qualquer mulher
comum
Você não chega lá por uma fé num
Deus
Você chega lá, porque então você é
um Deus
Já cega por um raio de um clarão
tremendo
A carne do seu ser põe-se a vibrar
tremendo
Esse é o momento enfim de sol e
nebulosa em que você
Meu caro, minha cara
Goza”
Leo Cavalcanti – O
Momento (música)
Direitos autorais
reservados a Juliana Amaral Corrêa
Rua Vereadora
Cecília F. da Silva, n. 32, Balança
Simão Pereira- MG
07 de novembro de
2015.
Nenhum comentário:
Postar um comentário